A MOCHILA DO NÃO

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  1. PRA COMEÇO DE CONVERSA

Comunicação eficaz. Essa é uma expressão cada vez mais utilizada por treinadores e tutores que tenham como objetivo principal compreender o que os cães sentem, pensam e desejam. A comunicação eficaz nada mais é do que percorrer o caminho mais direto possível entre emissor e receptor, deixando claro e evidente aos cães o que se espera deles. Podemos traduzir essa ideia com uma imagem em que tudo aquilo que motiva o cachorro é colocado dentro de uma mala, desde um carinho, um elogio, até seu brinquedo predileto, um petisco saboroso ou um passeio especial. E o zíper dessa mala se abrirá mediante comportamentos desejados, como aprender a esperar, vir quando chamado, olhar para o tutor etc. E diante de pulos, latidos, mordidas ou comportamentos que quebrem as regras de convivência, esse zíper se fecha automaticamente. Dentro dessa mala não há espaço para ferramentas e técnicas que causem medo, dor ou que ameacem a confiança do cão na nossa espécie. Simplesmente não cabe. Cuidado com bolsos e compartimentos extras, pois essa mala não pode ficar pesada! O segredo dela é ser leve, fácil de levar pra todo lugar. Todo excesso de bagagem, que gere uma comunicação indireta, rebuscada, complexa, é peso morto, comunicação ineficaz.

Após tantos anos de domesticação, a maioria dos cães deixou de ocupar o lugar de ferramenta de trabalho para ocupar os pés da cama (ou até a cabeceira) de seus tutores. E com o ápice da evolução dessa domesticação vêm tanto o desafio de como entender mais profundamente o que se passa na cabeça dos cachorros, como o de se fazer entender por eles.

Em geral, um cachorro sabe muito sobre seu dono, mas a recíproca não é verdadeira. Isto ocorre porque ao longo de sua evolução o canídeo precisou mover seu foco de atenção do seu entorno e de seus pares para o homem, sua nova fonte de recursos. Enquanto o cão observa e aperfeiçoa seu olhar sobre o humano há milhares de anos, o homem vem se debruçando sobre o estudo de seu principal animal de estimação há apenas algumas décadas. Entre os autores dessa já significativa bibliografia, destacam-se biólogos, psicólogos, zoólogos e veterinários, e algumas de suas contribuições para a ainda jovem ciência do comportamento canino apontam para a importância de se pensar também questões relativas à linguagem; não apenas a que é usada entre os cães, hoje já bastante difundida, mas também a que é usada pelo homem com seu cão no exercício da comunicação diária.

Sem possuir atributos físicos ou mentais que permitissem o desenvolvimento de uma linguagem comum, mas compartilhando desde sempre o mesmo hábitat doméstico, foi o cão quem fez –e ainda faz– o maior esforço para compreender o homem e ser compreendido. O homem ignorou a maior parte da linguagem canina e usou a sua própria para comunicar-se com o cão, sem se perguntar nunca até onde este era capaz de entendê-la. Com a penetração atual dos conceitos do treinamento positivo essas indagações sobressaem, revelando a necessidade de ajustes e reconduções para que a teoria do comportamento e a prática do treinamento canino encontrem suas melhores versões, mais atualizadas e consistentes.

 

  1. CACHORRO, CANE, CÃO, CHIEN, AUAU, HUND, DOG E PERRO
“Cachorros aprendem facilmente (…). No entanto, não são capazes de pensar de modo abstrato. São amorais, não podem deslocar-se mentalmente para frente ou para trás no tempo, e apesar de poder aprender a reconhecer a importância de algumas palavras, não entendem a nossa linguagem.” (Jean Donaldson, O Choque de Culturas).

A primeira coisa que precisamos saber sobre a linguagem verbal humana é que se trata de uma convenção. Não há correspondência natural entre as palavras e os conteúdos que elas expressam. Essa relação é construída. É por isso que essa coisa peludinha que mora conosco e não faz miau pode ser chamada tanto de dog, quanto de perro, cane, chien, hund etc. Em nosso idioma convencionamos chamá-la com uma sequência de três (cão), quatro (auau) ou oito (cachorro) letras em uma ordem específica.

Essa convenção é passada para as crianças por meio de associação e repetição, o mesmo mecanismo que permite ensinar algumas de nossas palavras a outras espécies, entre elas a do cão. Por isso, não podemos pretender que qualquer outra espécie “entenda” o que falamos “naturalmente”, a não ser que ensinemos a ela um repertório determinado por meio de associações.

 

  1. MIM, TARZAN, TU, DONO
“Cachorros não pensam da mesma forma que os humanos. Eles não têm as mesmas habilidades para a solução de problemas, nem o mesmo sentido de ‘certo’ e ‘errado’, nem sequer a mesma percepção de tempo que as pessoas têm”. (Dawn Antoniak-Mitchel; Teach Your Herding Breed To Be A Great Companion Dog)

Alguns pesquisadores estabelecem equivalências entre a capacidade cognitiva de um cão adulto e a de uma criança por volta dos três anos. Essa faixa etária em humanos corresponde à aquisição inicial da linguagem em que prevalece o uso de palavras pertencentes a duas classes gramaticais: substantivos e verbos, seguidos a uma distância notável por outros tipos de vocábulos. Com base nesta analogia seria razoável afirmar que o cão consegue associar sons (palavras) principalmente a coisas e ações. Quanto mais concreta for a coisa/ação associada ao som, quanto mais simples a associação, mais eficiente e direta será a comunicação.

As mais de mil palavras aprendidas pela supercadela Chaser são nomes de brinquedos, ou seja, nomes referidos a coisas concretas. Se Chaser pudesse falar sua fala provavelmente seria similar à da famosa frase de Tarzan.

 

  1. O CACHORRO E A NEGAÇÃO

O significado real de palavras complexas, como “lentamente”, “sonso”, “assim”, “defronte”, “quase”, “cansado”, “ciumento”, “burro” etc., não é possível ensinar a um cão. Podemos usá-las, mas precisamos ser conscientes de que elas não significarão a mesma coisa para quem as pronuncia e para o cão que as escuta. Pensemos, por exemplo, na palavra “junto”: o cão a associa à ação de permanecer ao lado de quem a emite e não ao sentido que tem para o homem de “ao lado” de o que quer que seja. O mesmo ocorre com “aqui” (que será interpretada como “vem”) ou “lá” (interpretada como “vai”), ou “rápido” e “devagar” que serão ouvidas como “correr” e “andar”.

Agora pensemos em palavras de conteúdo ainda mais abstrato como os advérbios “nunca”, “ontem”, “cedo”, que jamais usaríamos com cães e que as crianças demoram bastante a entender e usar corretamente. É neste grupo de vocábulos de conteúdo bem distante da realidade imediata de um cão que se encontra a palavra “não”. E, no entanto, nós a usamos frequentemente.

Segundo estudos da PNL (programação neurolinguística) ao ouvir a palavra “não” o cérebro humano “pula” para trás ou para frente buscando o contexto ao qual ela se opõe. Por isso, quando é dita isoladamente ela cai num vazio: Puf! Vira um fantasma, o contrário de algo que sequer foi dito. Para poder extrair pelo contexto o significado a que se refere uma oposição expressa pelo “não”, o humano precisa entender esta palavra como um sinal matemático de subtração (-), conceito do mundo das ideias, ao qual, até onde se sabe, o cão não tem acesso. Podemos ainda pensar o “não” em uma oposição binária sim/não, cujos equivalentes em termos educativos seriam certo/errado, conceitos que a ciência do comportamento canino também já apontou como inacessíveis às faculdades cognitivas dos cães.

Ao ouvir a palavra “não”, o cão, portanto, não terá acesso a seu sentido de negação de uma ação, e, dado que ela também não indica nenhuma ação/coisa concreta, seu “aprendizado” se dará por outros caminhos e sinais emitidos pelo homem.

 

  1. PALAVRAS QUE SIM, PALAVRAS QUE NÃO
“A outra face do aversivo é a punição positiva. Exemplos de punição no adestramento canino são as repreensões verbais, tapas, surras, batidas com jornal, borrifar água ou citronela, sacudir pelo pescoço e o onipresente tranco com a guia.” (Jean Donaldson, O Choque de Culturas)

O vocabulário usado no dia a dia com nossos cães raramente passa por um exame criterioso. Costumamos aplicar com eles a mesma lógica linguística que usamos com nossos pares humanos e deste uso emerge uma série de equívocos. Parte significativa do trabalho de educadores caninos hoje em dia consiste em desfazer estes equívocos um a um, transmitindo aos tutores as regras desta comunicação para torná-la eficaz para todos e coerente do ponto de vista do bicho.

Um educador canino experiente e que esteja ciente destas questões deverá muito provavelmente sugerir o abandono do uso do “não”, bem como de todos os seus sinônimos, sejam palavras ou expressões (nunca, jamais, nem pensar, nada disso…), e das interjeições ou sons que cumpram a mesma função (ah ah, nãnã, nananinanão, hei, shiu, epa etc.), capacitando o tutor a substituí-las por palavras que remetam a coisas concretas ou a comportamentos que deverão ser acrescentados ao repertório do cão por meio de treinamento (solta, sai, deixa, afasta, para, fica, vem, vai etc.).

Não se trata de não colocar limites para o cão. Trata-se de ensinar o tutor a colocar limites de forma justa usando uma linguagem que privilegie associações positivas construídas por meio da educação.

 

  1. A MOCHILA DO NÃO (o ponto de vista do cão)

Poucas palavras na língua são tão poderosas quanto este pequeno e arrogante caubói. O “não” encabeça a lista dos advérbios mais usados em português, é prepotente, destemido e já chega atirando, sem pedir licença nem explicação. É assim entre humanos e esse uso é transferido diretamente para o cão. Mas este, como já foi dito, não conhece inicialmente seu poder de fogo: “No começo, a mãe tenta dizer ‘Não’ com voz taxativa, mas o cão logo se acostuma a este som, e ele, portanto, não interfere em seu comportamento. É como se ela estivesse dizendo ‘Isso mesmo!’, ‘Mais forte!’ com voz contundente”, diz Jean Donaldson. O humano, diante desta indiferença do cão, começa a sacar da mochila toda sua munição: tom de voz ameaçador ou estridente, expressão facial tensa, algum gesto ou movimento do corpo em direção ao animal… Daí pra frente, a reação do cachorro diante de um “não” (e que muitos donos consideram ser compreensão da palavra) nada mais é do que a reação natural à “mochila do não”.

Cães são, por natureza, devoradores de associações, exímios leitores de sinais gestuais, grandes estudiosos de seus amos e possuidores de uma superaudição. Por isso, é inútil querer usar a palavra de forma branda ou substituí-la por outro som, porque o que a mochila carrega é a intenção que se coloca no ato da fala. Um “ah ah”, “nada disso” ou qualquer outra palavra ou expressão do bando virá quase sempre impregnada com os mesmos sinais perceptíveis para o cão de ameaça e repreensão. Podemos até substituí-la por outra totalmente nova, mas se a carregarmos com a mesma mochila, ela soará mais branda apenas aos nossos ouvidos.

Toda palavra carrega sua mochila. Na mochila das palavras viajam intenções, hábitos, histórico de uso, gestos, expressões e muitas outras informações das quais o humano muitas vezes sequer é consciente, mas que o cão capta perfeitamente por um instinto de sobrevivência. Vejamos, por exemplo, o caso da palavra “sim” e expressões semelhantes como “muito bem” ou “isso”: do ponto de vista do cão, a mochila do “sim”, diferentemente da do “não”, vem recheada de recompensas (praticamente uma petisqueira), o que torna a palavra um anúncio de que coisas boas acontecerão, despertando emoções que contribuem para o bem-estar físico e mental dele. Cães são interesseiros (no melhor sentido, o da preservação) e entendem os estímulos do mundo como interessantes ou desinteressantes, seguros ou perigosos. Para ele o “sim” é seguro, o “não” é confuso e, talvez, perigoso, podendo chegar a provocar ansiedade, mal-estar, estresse e medo.

 

  1. ATENÇÃO POSITIVA (o ponto de vista do homem)

Além de zelar pelo bem-estar geral do cão, descontinuar o uso de qualquer forma de negação favorece ainda a transição do modo anterior de ensino (baseado na já ultrapassada teoria da dominância) para uma educação baseada em recompensas (treinamento positivo). Não poder dizer “não” é como jogar fora a mochila da repreensão. E essa é uma estratégia poderosa para ajudar o homem a tornar mais positiva sua atenção, evitando recompensar os comportamentos indesejados, recompensando os desejados, e aumentando o repertório de acertos do cão.

Se por um lado não é nada fácil desprogramar o “não” da nossa fala cotidiana, por outro, basta começar a fazê-lo para sentir os benefícios dessa nova interação. Uma manhã ou tarde de teste é suficiente para percebermos a quantidade de situações em que o “não” aparece. Este número corresponde exatamente à quantidade de oportunidades que teremos para inverter nossa atenção e construir uma comunicação muito mais eficiente, baseada na criação de novos comportamentos passíveis de gerarem recompensas, elogios e atenção,sejam alternativos ou incompatíveis com aqueles considerados “errados” (e que tenderíamos a recriminar por meio do “não”).

 

  1. MARCADOR DE NÃO RECOMPENSA (o ponto de vista dos especialistas)

A preocupação com o uso da linguagem verbal humana e suas implicações não passa despercebida pela análise dos especialistas. Frequentemente transparece um cuidado quanto aos riscos de cair num uso aversivo da fala mesmo quando se pretende ensinar por meios que não o sejam. Isso é particularmente notável quando se trata do ensino do marcador de não recompensa (MNR), uma das ferramentas à disposição do treinador, mas que não deve ser confundida com um marcador negativo qualquer. O MNR (Non Rewarding Mark – NRM) é uma instância de punição negativa condicionada, um indicador de que o cão está indo pelo caminho errado para obter um reforço. Seu treinamento é feito por meio de recompensa, mas seu uso posterior ocorre, como o nome indica, apenas por meio da marca sonora associada durante o treino, eliminando-se a recompensa, que permanece apenas como promessa (isca) para que o cachorro continue tentando. Este condicionamento exige um treinamento rigoroso e não deve ser usado como estratégia para interromper um comportamento indesejado. Trata-se de um treino para ser usado como ferramenta, sobretudo, dentro de outros treinamentos. Em O Choque de Culturas, Jean Donaldson detalha a técnica, alertando sobre os riscos na escolha da palavra a ser associada: “A escolha do marcador de não recompensa (MNR) depende do cachorro e do contexto. Talvez você decida estabelecer mais de um com um determinado cão. Por exemplo, ‘AH!, AH!’ dito intensa e firmemente costuma ser por si só aversivo, pelo que não se trata apenas, estritamente falando, de uma punição negativa condicionada. Neste caso, funciona também como uma punição positiva e primária moderada”.

 

  1. DO PONTO DE VISTA DE TODOS

Se ainda restar algum argumento a favor do “não”, pensemos que para transformar algo tão arraigado em nossas vidas, como é o modo de educar baseado na “correção” (certo/errado), vamos precisar de toda a ajuda disponível. Quem já tentou livrar-se de algum vício, como deixar de fumar ou comer compulsivamente, deve ter percebido que é mais fácil cortar de raiz. Que aquele “cigarrinho inofensivo” ou aquela “pausa” na dieta faz despencar de novo no vício. Portanto, por mais que inicialmente pareça quase impossível eliminar qualquer tipo de correção, lá na frente teremos economizado muito tempo, porque teremos sido conduzidos a recompensar cada vez mais os comportamentos desejados, aumentando sua recorrência, e a ampliar o repertório comportamental de “acertos” do cão.

Se é possível treinar um cachorro fazendo apenas associações positivas (recompensa) e gerando nele reações fisiológicas que trazem bem-estar, sensação de prazer, confiança e segurança, por que escolher um método que gera ou pode gerar reações nocivas a seu corpo e à sua mente? Pode parecer incompreensível que muitas pessoas ainda se resistam a abdicar completamente do uso da força ou da ameaça na educação de cães, mas devemos aceitar que esta mudança drástica de cultura exige tempo, dedicação e disponibilidade social e afetiva para enxergar os animais de estimação de forma totalmente diferente.  A boa notícia neste sentido é que algumas medidas podem significar aquele empurrãozinho para deixar de vez aqueles vícios de agredir para obter obediência, de castigar para promover o aprendizado, de ameaçar para evitar o comportamento indesejado: eliminar o “não” em todas as suas formas é como jogar fora aquele cigarrinho escondido no armário ou passar bem longe da mesa de doces da festa.

 

Carolina Jardim

Psicóloga, Especialista em Comportamento Animal e Educadora de Cães

Mariana Cordiviola

Formada em Letras na USP, Tradutora, Escritora e Roteirista